Recentemente foram veiculadas notícias sobre um caso real que supostamente teria inspirado Nabokov a escrever Lolita: o sequestro da jovem Florence Sally Horner, em 1948. Citada explicitamente uma única vez ao longo do romance, Sally teria mesmo sido a grande inspiração do autor?
“I just like composing riddles with elegant solutions” disse Vladimir Nabokov em uma entrevista para a BBC, em 1962. De fato, há muitos códigos, referências, dicas e brincadeiras com o leitor nas obras de Nabokov, sejam detalhes sobre seus próprios livros, que conversam entre si, sejam referências à dita realidade. Dentro de um mesmo ponto de partida, há muitos caminhos a serem trilhados no labirinto. Todas as referências são hipóteses, nunca certezas, e mais de uma resposta pode ser apresentada para um mesmo elemento do livro. Por meio de análises profundas de seus livros, em especial Lolita, algumas pessoas começaram a tentar solucionar alguns desses jogos. Alguns acreditam que exista uma resposta para o quebra-cabeça, de que Nabokov tenha, em Lolita, deixado sua “deixa”, como ele mesmo aponta. Isto é, que Lolita seja um quebra-cabeça cuja solução se encontra no próprio livro, e cujas pistas estão por toda parte. Ao me aprofundar na leitura nabokoviana, eu comecei a notar jogos e referências que ele deixava aqui e ali, e pude perceber a profundidade e a sutileza de suas brincadeiras com o leitor.
Eu não sei se essas pistas levam a algum lugar ou se são apenas jogos, mas eu decidi falar um pouco sobre seus quebra-cabeças. De maneira sucinta, eu escolhi apontar para alguns desses jogos de Vladimir Nabokov ao longo do seu livro mais famoso, Lolita, para demonstrar, de alguma maneira, que Sally é apenas um detalhe dentro da grande rede nabokoviana, e que não representa a grande razão para a existência da obra ou, pelo menos, não a única.
Nabokov nos mostra, dentre outros aspectos, os gêmeos de H.H da vida real, tendo como destaque, nesse texto, três figuras muito conhecidas: Edgar Allan Poe, Charlie Chaplin e Lewis Carroll. Ao conhecermos seus gêmeos, também somos apresentados a suas Lolitas: Lilita, Alice e Virgínia. Falarei, por último, de duas figuras instigantes: a famosa Shirley Temple e a misteriosa Vivian Darkbloom.
HUMBERT E SEUS IGUAIS — H.H. CELEBRA O POETA-POETA

Annabel Leigh, o primeiro amor de Humbert Humbert, é inspirada no poema de Edgar Allan Poe intitulado “Annabel Lee”.
“It was many and many a year ago,
In a kingdom by the sea,
That a maiden there lived whom you may know
By the name of Annabel Lee;”
O poema trata de um amor juvenil em um reino à beira-mar, como na história de Humbert e seu primeiro amor, Annabel Leigh.
“I was a child and she was a child,
In this kingdom by the sea,”
No primeiro capítulo de Lolita podemos ver a figura do principado à beira-mar e do amor juvenil do narrador: “In point of fact, there might have been no Lolita at all had I not loved, one summer, a certain initial girl-child. In a princedom by the sea.”.
Na parte final do mesmo capítulo é apresentada como primeira prova ao júri (muitas vezes invocado ao longo do livro) aquilo que os serafins invejaram: Ladies and gentlemen of the jury, exhibit number one is what the seraphs, the misinformed, simple, noble-winged seraphs, envied.”
Os serafins também estão no poema de Poe. Os termos são parecidos (envied/coveted e winged):
“With a love that the wingèd seraphs of Heaven
Coveted her and me“
Como na história de Humbert, Annabel é morta ainda jovem, trazendo grande dor ao poeta. Na parte final do poema:
“Of my darling — my darling — my life and my bride,
In her sepulchre there by the sea —
In her tomb by the sounding sea.”
Além disso, o sobrenome da Annabel (Lee) de Poe é incorporado à própria Lolita quando seu apelido é soletrado: “Lolita, light of my life, fire of my loins. My sin, my soul. Lo-LEE-ta”.
O lugar à beira do mar é importante para Vladimir Nabokov. Seu primeiro amor também se deu à beira-mar, quando o autor tinha cerca de 10 anos, em Biarritz, na França, como é para o jovem Humbert Humbert, que vive seu primeiro amor na Riviera francesa. Nabokov chegou a pensar em chamar o livro de A Kingdom by the Shore e também A Kingdom by the Sea antes de se decidir por Lolita.

Há muitas outras referências a Poe em Lolita, como na parte inicial do livro, em que Humbert tenta nos tornar cúmplices de seus desejos por jovens meninas, trazendo toda sorte de argumentos que justificam ou escusam seus impulsos. Ele diz: “Virginia was not quite fourteen when Harry Edgar possessed her”. Em 1835, Edgar Allan Poe se casou com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade, sendo essa uma clara referência ao autor americano*.
Nabokov nos aponta, mais de uma vez, a figura de Poe como um gêmeo de H.H, como no seguinte trecho: “Monsieur Poe-poe,” as that boy in one of Monsieur Humbert Humbert’s classes in Paris called the poet-poet.”. Poe é uma palavra que se assemelha a poet/poem, jogo linguístico muitas vezes utilizado durante o romance. H. considera-se um poeta, como o grande poeta-poeta Edgar A. Poe. A ideia do duplo, isto é, do gêmeo ou do igual, da figura no espelho, do Doppelgänger ou do sósia é presente em algumas obras de Nabokov, como Despair e The Real Life of Sebastian Knight, assim como em Lolita. A figura do Doppelgänger de Humbert é Claire Quilty. Ao desconfiar de que está sendo perseguido, H. se refere a Quilty como outro Humbert ao encalço dele. (“another Humbert was avidly following Humbert and Humbert’s nymphet”). Humbert Humbert, um nome inventado pelo narrador, é também um duplo. Curiosamente, na obra de Edgar Allan Poe há um conto intitulado William Wilson, que trata de um homem atormentado por seu Doppelgänger.
Além disso, o próprio Poe é apresentado, pelo próprio H.H., como seu igual. Ele acredita que tem grande sensibilidade e nos mostra suas qualidades físicas e intelectuais em diversos momentos do livro, elogiando-se, engrandecendo-se e se igualando aos grandes poetas, como aqui: “Oh Lolita, you are my girl, as Vee was Poe’s and Bea Dante’s”. Assim como Poe tem sua Virgínia, Humbert tem sua Lolita. Humbert o admira e acredita ser igual a ele.
Em certo momento, em sua convivência com Charlotte, Humbert se incorpora a Poe mais do que como seu igual, mas como ele próprio: “Mr. Edgar H. Humbert (I threw in the “Edgar” just for the heck of it), “writer and explorer.”’ e assim também o faz quando se hospeda com Lolita no hotel Caçadores Encantados: “In the slow clear hand of crime I wrote: Dr. Edgar H. Humbert and daughter, 342 Lawn Street, Ramsdale.” e ainda “At dinner with Dolly in town, Mr. Edgar H. Humbert was seen eating his steak in the continental knife-and-fork manner.”
Humbert é um sujeito arrogante que se faz de sensível e tenta nos tornar cúmplices de seus crimes. Nas palavras de Nabokov: “Humbert Humbert is a vain and cruel wretch who manages to appear touching”.
*Esse não é o único caso em que Nabokov se refere a um autor modificando levemente seu nome: Edgar Allan se torna Harry Edgar.
HUMBERT E SEUS IGUAIS — H.H. ENCONTRA CHARLIE CHAPLIN

Durante a vida, Charlie Chaplin — cujo nome dispensa apresentações — manteve diversos relacionamentos com moças bem jovens. Nas palavras do escritor Irving Wallace: “Chaplin gostava mais do que qualquer outra coisa de deflorar uma meninota virgem”. Aos 28 anos, casou-se com Mildred Harris, de 16 anos, que fazia parte de seu círculo íntimo desde os 14. Lilita McMurray, por sua vez, chamou a atenção do diretor quando tinha apenas 6 anos. Aos 16 anos, a jovem engravidou de Chaplin, que sugeriu um aborto. Lilita, porém, não aceitou. Para não ser preso, eles se casaram.

A jovem usava o nome artístico de Lita Grey. Lilita é um nome que soa muito parecido com Lolita e a cor — gray — lembra o som de Haze (“Wanted, wanted: Dolores Haze/Her dream-gray gaze never flinches”). Os olhos de Lolita são cinzas (“I composed a madrigal to the soot-black lashes of her pale gray vacant eyes”). Gray é a palavra que nos remete a Lilita ao longo do livro e é repetida diversas vezes.
Além disso, Lolita tem sua primeira relação sexual com o jovem Charlie Holmes, que é descrito como “o silencioso, grosseiro e carrancudo mas infatigável Charlie”. O interesse de Lolita por estrelas de cinema e seu desejo por se tornar uma atriz também podem ser interpretados como uma referência à jovem atriz Lita Gray. Dolores se apaixona por Quilty, um famoso cineasta. Os ares hollywoodianos perpassam o livro com suas luzes vibrantes.
No final do romance, Dolores, grávida, e seu marido, Dick, pretendem ir para uma cidade ficcional de nome “Gray Star”, no Alasca. Lita Grey iria fazer parte do filme The Gold Rush (1925), de Chaplin, sobre o personagem Vagabundo, que tenta a sorte no Alasca. Porém, a menina, grávida, teve de ser substituída por Georgia Hale. No mesmo ano, Hale fez um filme intitulado The Salvation Hunters, cujo nome lembra o primeiro hotel em que Humbert Humbert vai com Lolita: The Enchanted Hunters. The Enchanter é o nome em inglês para o conto de Nabokov que teria sido, em suas palavras, a primeira palpitação de Lolita e que no Brasil ganhou a tradução de O Mago.
HUMBERT E SEUS IGUAIS — H.H. TOMA CHÁ COM LEWIS CARROLL
“I always call him Lewis Carroll Carroll, because he was the first Humbert Humbert.” — V.N

O reverendo Charles Dodgson estava na faculdade Christ Church, Oxford, quando conheceu Alice Liddell, de apenas 3 anos. Filha do reitor Henry Liddell, Alice foi fotografada por Dodgson juntamente com suas duas irmãs, Lorina e Edith. É sabido por muitos o envolvimento de Dodgson e sua relação platônica com crianças. Ele gostava de desenhar e fotografar meninas seminuas e nuas, com a permissão das mães. Figura polêmica, certa vez disse gostar de crianças, exceto meninos. Alice se tornou sua maior paixão e fonte de inspiração, tornando-se uma das mais conhecidas personagens da literatura infantil.
Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido pelo pseudônimo de Lewis Carroll, é o autor de Alice’s Adventures in Wonderland e Through the Looking-Glass and What Alice Found There. Alice no País das Maravilhas fez um grande sucesso em sua publicação, contendo uma série de jogos e charadas, sendo algumas quase imperceptíveis. Nabokov foi o responsável por traduzir o livro para o russo e, como Carroll, gostava de resolver problemas, charadas e quebra-cabeças, incorporando-os também em seus livros. Conhecendo o gosto de Nabokov por códigos, não surpreende seu interesse por Carroll.
Em uma entrevista, em 1967, Nabokov fala sobre o autor de Alice:
“In common with many other English children (I was an English child) I have been always very fond of Carroll. No, I do not think that his invented language shares any roots with mine. He has a pathetic affinity with H. H. but some odd scruple prevented me from alluding in Lolita to his perversion .”
V.N. diz que, apesar das semelhanças entre Carroll e Humbert, não há grandes alusões àquele em Lolita e, realmente, não há muitas referências diretas a Carroll no livro. Apesar disso, há aspectos que aproximam a figura do autor inglês à vida de Nabokov, como o gosto para o xadrez, para os enigmas e para a poesia. Nesse sentido, vale a pena dar uma olhada em certas interpretações da obra nabokoviana que nos remetem a um eco da figura de Carroll através do espelho.
Os nomes de Lolita e de sua mãe, Charlotte, lembram o nome da irmã de Alice e a primeira criança Liddell a ser fotografada por Carroll, Lorina Charlotte Liddell. Lorina é também o nome da mãe de Alice. Lolita/Lorina e Charlotte formam as iniciais L.C: Lewis Carroll. Charlotte é o nome feminino de Charles (nome verdadeiro de Carroll). Louise é a empregada da família Haze. Louise/Charlotte — Louis/ Charles — Lewis Carroll. Além disso, Charlotte, no livro, perde um filho de 2 anos de idade. A mãe de Alice, Lorina, também perdeu um filho de 2 anos de idade.
Quando Humbert está com Lolita no quarto do Caçadores Encantados e tenta fazer a menina dormir com pílulas, há o seguinte trecho: “A breeze from wonderland had begun to affect my thoughts, and now they seemed couched in italics, as if the surface reflecting them were wrinkled by the phantasm of that breeze”. Com os termos “refletindo” (reflexo no espelho) e “país das maravilhas”, o momento nos remete a Alice, que precisa tomar um frasco de bebida (pílulas?) para entrar no mundo das maravilhas, Wonderland. Lolita, por sua vez, precisa tomar as pílulas dadas por Humbert (drink me) para entrar no mundo de Humbert, Humberland, como nos deixa claro o seguinte trecho: “She had entered my world, umber and black Humberland, with rash curiosity”. o mundo de Humbert como o mundo das maravilhas de Carroll e Lolita como Alice, adentrando nesse mundo com curiosidade imprudente. Há outros momentos em que Humbert deixa claro que o mundo das maravilhas é o seu mundo, confirmando a hipótese: “To the wonderland I had to offer”. O mundo das maravilhas que ele tem a oferecer. Humbert como reflexo da figura de Carroll. Humberland como um reflexo de Wonderland e Lolita como Alice.
Outra passagem interessante é:
“Et moi qui t’offrais mon génie… I recalled the rather charming nonsense verse I used to write her when she was a child: “nonsense,” she used to say mockingly, “is correct.”
The Squirl and his Squirrel, the Rabs and their Rabbits
Have certain obscure and peculiar habits. (..)”
No primeiro momento em francês ele diz algo como “e eu te ofereci meu gênio” e depois fala de versos “nonsense”. Nonsense é a própria definição do mundo de Carroll. Logo depois há uma poesia em que se usa a palavra coelho e outros animais que têm “certos hábitos obscuros e peculiares”. O poema é um típico Nonsense Carrolliano, sendo uma clara referência ao autor inglês.
Com relação a números, ao longo do livro há muitas referências a pessoas e acontecimentos. Determinados códigos e datas vão se repetindo ao longo do romance. Para trazer apenas alguns:
Humbert Humbert morre em 16/11/1952. Essa data nos leva ao nascimento e à morte de Alice Liddell, que morreu em 16/11/1934 e nasceu em 1852. No final do romance, Humbert recebe uma carta escrita por Lolita, após sua fuga, em 18 setembro de 1952. Na ordem inglesa: 09/18/52. 1852. Nesse mesmo capítulo há uma referência direta a Carroll: “the ever alert periscope of my shameful vice, would make out from afar a half-naked nymphet stilled in the act of combing her Alice-in-Wonderland hair”. 1952 é o ano em que os três principais personagens do livro morrem: Quilty, Lolita e Humbert. É também o ano em que Sally Horner, que foi sequestrada por um homem nos EUA e cuja história se assemelha a de Lolita, morreu, em um acidente de carro, em 18/08/1952. Um mês antes da carta escrita por Lolita. Na data inglesa: 08/18/1952 ou 08/18/52. 1852.
Há outras referências a 1852, como no trecho “Pierre Point in Melville Sound”, que diz respeito a “Pierre; or, the Ambiguities”, um livro escrito por Melville e publicado em 1852. Quando Humbert chega ao hotel Caçadores Encantados, recebe a chave do quarto em que ficará com Lo, entregue por quem ele chama de tio Tom, “handed over to Uncle Tom”, sendo essa uma referência ao livro “Uncle Tom’s Cabin”, de 1852.
Alice morreu apenas um mês e meio antes do nascimento de Dolores Haze, em 01/01/1935. Há um renascimento simbólico do espírito da “ninfeta real”, Alice, para a “literária”, Lolita. Alice é a ninfeta de Carroll como Lolita é a de Humbert. Humbert é um reflexo distorcido de Carroll. Ainda dentro da lógica dos números de Nabokov, há sugestões interessantes entre as dicas deixadas nos livros e datas relevantes para a vida de Carroll. Em Dreamland (1882), um poema de Lewis Carroll, há o seguinte estrofe: “Lo, warriors, saints, and sages”.
Lolita foge com Quilty em 4 de julho de 1949. 4 de julho é o dia em que se comemora a Independência dos EUA, mas também o dia de independência de Dolores Haze. Não apenas isso, 4 de julho é também o dia em que Lewis Carroll levou as irmãs Liddell para um passeio e inventou a história de Alice no País das Maravilhas. 4 de julho é o dia não apenas do nascimento do livro, mas de sua publicação, dois anos depois.
Por fim, longe de esgotar as possíveis associações entre a obra nabokoviana e carrolliana, alguns acreditam que a chave para Lolita (Lolita’s Riddle) seja a figura de Carroll. Em uma entrevista dada a Playboy, em 1964, Nabokov diz:
“She [Lolita] was like the composition of a beautiful puzzle — its composition and its solution at the same time, since one is a mirror view of the other, depending on the way you look.”.
Uma é a visão espelhada da outra, dependendo de como se olhe. Novamente, o reflexo no espelho.
QUARTO 342: UM OLHAR SOBRE SHIRLEY TEMPLE

Conhecida como a “queridinha da américa”, Shirley Temple, nascida em 23 de abril de 1928, foi uma atriz mirim de grande sucesso nos Estados Unidos, sendo a criança mais fotografada da história e a mais bem sucedida, com a maior arrecadação de bilheteria em Hollywood. Shirley começou sua carreira aos três anos de idade. Em 1932, assinou um contrato com o diretor Charles Lamont para participar do Baby Burlesks, uma série de curtas satírica em que crianças pré-escolares se vestem como pequenos adultos de fralda. A experiência de assistir a esses filmes é, no mínimo, perturbadora. Em War Babies (1932), Shirley, aos 4 anos, faz o papel de uma prostituta em um bar repleto de soldados. Ela dança e é disputada por dois dos soldados, que dão a ela pirulitos como pagamento. Os bebês-soldados bebem leite e um deles, o único negro, dança e tira a roupa, em cima de uma mesa, para os outros. Um bebê de gatinhas abre a boca para gotas de leite que caem de uma mamadeira na mesa acima dele, e depois é posto para mamar no dedo de uma luva cheia de leite.

Em 1937, Graham Greene, escritor e jornalista inglês, escreveu uma crítica sobre o filme Wee Willie Winkie, estrelado pela jovem atriz. Sugerindo que o filme sexualiza Temple, Greene fala sobre sua coqueteria e seu efeito atrativo para os que seriam, em suas palavras, seus maiores fãs: homens de meia-idade e clérigos, que responderiam ao seu “well-shaped and desirable little body”. Esse artigo é visto por alguns como a primeira denúncia da sexualização infantil em Hollywood. Greene foi processado e, com medo de ser preso, foi viver no México.
Em sua autobiografia, Child Star, Shirley Temple fala dos seus trabalhos iniciais como “uma exploração cínica de nossa inocência infantil que ocasionalmente era racista ou sexista”. Conta também que, em 1940 (portanto, quando tinha por volta de 12 anos), Arthur Freed, um produtor da MGM, exibiu suas partes íntimas para ela quando se conheceram em seu escritório.

Com a publicação de Lolita em 1955 e sua grande rejeição no mercado editorial, além de banimento em diversos países, o mesmo Graham Greene, que denunciou as perversidades nos filmes de Temple, defendeu, no London Sunday Times, o livro como uma das três melhores publicações do ano, chamando a atenção do público e contribuindo para o estopim do seu sucesso.
Há algumas evidentes semelhanças entre Lolita e as personagens de Temple. Em seus filmes, Shirley quase sempre atua no papel de uma órfã ou criança sem mãe que é adotada por um homem solteiro ou mora apenas com o pai. As cenas de música envolvem letras românticas cantadas pela figura masculina adulta e/ou por Shirley, enquanto ela está abraçada ou sentada em seu colo, com os dois na mesma altura. Há cenas de beijo e carícias com esses homens, incluindo uma cena em que Shirley está sentada no peito de um deles, na cama. Em Poor Little Rich Girl (1936), Shirley faz o papel de uma menina rica que é muito protegida e mimada, até que, no caminho para a escola, acaba ficando sozinha e resolve fingir ser outra pessoa. No início do filme, a personagem de Shirley e seu pai ficam sentados, abraçados, com a menina em seu colo. Começa a tocar uma música romântica e o pai canta para ela. Depois Shirley canta uma música de sua própria autoria para o pai, em que ela diz que quer se casar com ele e ser sua esposa. Um pouco depois, Shirley sobe em uma balança de rua que dá o seu peso e sua sorte. Em sua sorte diz que ela se casará dentro de um ano.
Nesse mesmo filme, há uma babá de Shirley, que é uma figura materna e desagradável. Quando elas estão na estação, em que Shirley irá para uma Colônia de férias e para a escola, como Lolita, essa mulher morre em um acidente de carro, atropelada da mesma forma que Charlotte Haze no livro, deixando a menina desamparada, sozinha e desprotegida dos predadores masculinos. Ao longo de todo o filme há um homem misterioso que ronda e segue a criança, numa figura muito parecida com a de Claire Quilty. Ele tenta levar a menina algumas vezes, mas é impedido por um outro homem, que “adota” Temple para explorá-la no “showbiz”. Em Bright Eyes (1934), outro filme com Temple, a mãe da menina morre em um acidente de carro, ficando a personagem de Shirley aos cuidados de duas figuras masculinas, que brigam pela sua guarda. Mais uma vez, a figura de Shirley perde a mãe e fica aos cuidados da figura paterna. Em Lolita, a dona da Colônia de Férias em que Dolores Haze ficará é Shirley Holmes. Charlotte diz: “Camp will teach Dolores Haze to grow in many things — health, knowledge, temper”. Lo tem grande interesse por cinema e quer ser uma atriz, o que nos remete não apenas a Lita Gray, mas também a Shirley Temple, que fazia grande sucesso nos anos 1940, época em que se passa a história.
Em algumas entrevistas, Nabokov disse comemorar seu aniversário no dia 23 de abril, apesar de ter nascido no dia 22, porque isso o fazia compartilhar a data de aniversário com Shakespeare e Shirley Temple, o que demonstra que ele estava familiarizado de maneira positiva com figura de Shirley. Como vimos, os números são importantes para o autor. Além da importância do número 52, há o 42, o 342 e o 9. 342, além de conter o número 42, soma-se como 3 + 4 + 2 = 9. Shirley Temple tinha 9 anos quando Greene escreve sua crítica. Em Kid in Africa, um dos curtas do Baby Burlesks, Shirley é sequestrada por canibais e colocada em uma panela gigante. Quando ela está “pronta”, o cozinheiro pega um telefone e manda chamar no Congo, 342. Salva por uma espécie de Tarzan, eles vão para o hotel Squaldorf. As personagens “abastecem” mamando de um mamilo ou bico, a que o filme se refere como “weary nipple cafe specials”. 342 é o número da casa da família Haze em Ramsdale e o número do quarto do hotel Caçadores Encantados. Humbert e Dolores são levados ao quarto por um persoangem que, como já dito, é uma referência ao tio Tom de Uncle Tom’s cabin, um livro sobre a escravatura nos Estados Unidos. Além de ser uma referência ao 52, é também uma referência a Shirley em Kid in Africa e Dimples (1936), filme em que um persoangem quer que a menina estrele numa peça baseada em Uncle Tom’s cabin.
Quando Lolita foge com Quilty, Humbert diz: “between July 5 and November 8, when I returned to Beardsley for a few days, I registered, if not actually stayed, at 342 hotels, motels and tourist homes”. Isto é, Humbert foi a 342 hotels, motels etc. no rastro de Lo e seu raptor. Do dia 5/07 ao dia 08/11 são 126 dias (1 + 2 +6 = 9) ou 18 semanas (1 + 8 = 9). Esse é um momento interessante do livro, pois H.H. fala sobre as brincadeiras e pistas deixadas nos registros de hotel por Quilty, que parece conhecê-lo intimamente, pois faz referências à literatura, ao pai verdadeiro de Dolores (Harold Haze) e a Gustave Trapp. Gustave, muitas vezes citado ao longo do romance, é um tio de H.H. que muito se assemelha a Quilty. Quilty, figura do outro lado do espelho, embaçada, misteriosa, tão culta quanto Humbert, que sabe tudo aquilo que ele e Lolita viveram juntos e que muito se parece com a figura também misteriosa de seu tio. É como tio Gustave que Quilty leva Lo do hospital e foge com ela.
(A figura do tio é muito importante, mas não é o momento de abordá-la.)
“MINHA DEIXA”: UMA BIOGRAFIA ESCRITA POR VLADIMIR NABOKOV

Vivian Darkbloom — que aparece também no livro Ada or Ardor (1969) – é esposa de Claire Quilty, cineasta e o segundo abusador de Lolita. Claire, Dolly revela a Humbert no final do romance, fazia filmes pornográficos, filmados em sua mansão por Vivian. Era ela quem registrava os abusos de Quilty, por meio de vídeos que envolviam, dentre outras coisas, menores de idade (como Dolores Haze). Em certa passagem, há o seguinte diálogo entre Dolly e Humbert:
Humbert: “Vivian is quite a woman. I am sure we saw her yesterday in that restaurant, in Soda pop.” “Sometimes,” said Lo, “you are quite revoltingly dumb. First, Vivian is the male author, the gal author is Clare (…)”
Lolita, para despistar Humbert, tenta enganá-lo, dizendo que Vivian é um homem e Quilty, uma mulher.
O prefácio de Lolita, assinado pelo médico John Ray, leva à ideia de que seja um prefácio real, mas, na realidade, foi escrito por Nabokov e tem um papel importante no romance, pois indica o desfecho de todos os personagens (sem que muitos percebam). Sobre Vivian Darkbloom nos é informado que a mulher está escrevendo uma biografia intitulada “my cue”, o que seria algo como “minha deixa”. (“Vivian Darkbloom” has written a biography, “My Cue,” to be published shortly, and critics who have perused the manuscript call it her best book. The caretakers of the various cemeteries involved report that no ghosts walk.”). Vivian, pensando sob um primeiro aspecto, pode ter, em sua “deixa”, mais uma vez, registrado o que vivenciou com Quilty. “Quilty, the Guilty [culpado]”.
Talvez muitos saibam que Vivian Darkbloom é um anagrama para Vladimir Nabokov. Não é o primeiro anagrama de Nabokov em suas obras (temos também Blavdak Vinomori em Korol’, dama, valet [Rei, Valete, Dama]). O que, por outro lado, talvez poucos saibam é que, no mesmo período em que escrevia Lolita, Vladimir Nabokov também escreveu Speak, Memory, sua autobiografia. Ao tentar enganar Humbert, Dolores nos diz que Vivian é, na verdade, um homem. Assim, o que Nabokov parece nos dizer é que Vivian Darkbloom — que é ele — está escrevendo sua deixa. Mas a que “my cue” se refere: a Lolita, a Speak, Memory, a tudo ou — quem sabe- a nada? O que Speak, Memory diz sobre Lolita e vice-versa? Parte da solução do enigma estaria em sua autobiografia?
POR FIM: Por que as referências em Lolita importam?

O que eu tentei fazer, de certa forma, foi não só chamar atenção para a genialidade de Vladimir Nabokov e sua dedicação aos quebra-cabeças, mas demonstrar que Nabokov não escreveu Lolita por conta da jovem Sally que foi sequestrada, assim como não a escreveu por conta de Lilita Gray ou ninguém da vida real. Lolita, em sua concepção, era um lindo quebra-cabeça, sua composição e solução ao mesmo tempo.
“She was like the composition of a beautiful puzzle — its composition and its solution at the same time, since one is a mirror view of the other, depending on the way you look.” (V.N.)
Nabokov, com muita pesquisa e por meio de sua arte refinada, nos mostra as diversas Lolitas da realidade, assim como os Humbert Humbert da vida real. Lolita é um manifesto da liberdade na produção artística, do êxtase da beleza e de denúncia às perversidades da nossa sociedade. Nabokov fez isso à sua maneira, talvez muito sutil para a maioria, mas na qual ele acreditava poder alcançar o verdadeiro leitor. Ele propõe que o verdadeiro leitor, o releitor, brinque com sua obra, que monte e desmonte seus quebra-cabeças, que enxergue “sua deixa” e que se extasie com a beleza de sua prosa.
Tudo na vida real poderia compor Lolita — e nada pode. A produção artística é somente dele, e ele a recheia de Lolitas e Humberts, talvez para nos mostrar o que fingimos não enxergar em nossa própria realidade. A sua sociedade não olhava para Sally, ou Lilita, ou Shirley Temple. Infelizmente, a sociedade nos mostrou que também não olha para sua pobre Lolita, um mero reflexo no espelho quebrado da vida real. A sociedade condena Lolita como condenou suas iguais, e perpetua a imagem de homens como Charlie Chaplin e Lewis Carroll, que continuamos a celebrar. Vladimir Nabokov nos mostrou, com a incompreensão dos leitores, que ele estava certo — dolorosamente certo. V.N. estava tão certo que, infelizmente, recusaram-se a compreendê-lo.Construíram um Vladimir-Humbert, quando Nabokov se aproxima mais de um Vladimir-Dolores. Ninguém olha para seus quebra-cabeças, estejam eles solucionados ou não. Ninguém olha para Vladimir-Dolores. Ninguém olhou para as gêmeas de Lolita, enquanto todos celebram os Humbert Humbert e seus iguais.
Um comentário em “OS QUEBRA-CABEÇAS DE VLADIMIR NABOKOV: Por que as referências em Lolita importam?”